quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Psicologia Penitenciaria: Relatos de uma Psicologa







A Psicologia Penitenciária é um dos ramos da Psicologia Jurídica, especialidade que desperta novo interesse de profissionais preocupados em compreender e auxiliar presos e suas respectivas famílias. Apesar de antiga e importante, a organização necessária para o melhor trabalho ainda caminha timidamente no Brasil. psicóloga Fátima França é uma das personagens brasileiras que acompanham de perto essa marcha pela valorização e divulgação da área.
Interessada pelo tema desde o começo da carreira, foi uma das fundadoras da Associação Brasileira de Psicologia Jurídica e atualmente coordena o curso de Psicologia Jurídica do Iinstituto Sedes Sapientiae.
Em entrevista exclusiva para a revista Psique Ciência & Vida, a especialista fala sobre a situação atual da Psicologia Jurídica no Brasil e explica o funcionamento da Psicologia Penitenciária. De peito aberto, a profissional comenta sobre a necessidade de equipes maiores nos presídios, o relacionamento com os detidos e o papel da sociedade em garantir os direitos humanos de todos os envolvidos.

Um dos fatores que talvez contribuam para o crescente interesse pela Psicologia Jurídica é o alto índice de violência registrado no País? Fátima França: Com certeza. Principalmente para quem é da área de Direito, pois, para esses profissionais, é sempre muito instigante querer entender por que tal pessoa fez isso ou aquilo. O direito é uma ciência normativa. A Psicologia não é uma ciência normativa, trata da subjetividade. Mas é nesse campo da violência que ela pede passagem e ganha espaço nos estudos dos fenômenos que têm acontecido. Como quando um pai que não suporta o processo litigioso de separação conjugal ou não aceita perder disputa de guarda do filho e acaba matando essa criança, como temos visto em muitos casos, isso começa a gerar muitas dúvidas. O papel do psicólogo jurídico cabe também em não fazer somente essa pergunta, mas também perguntar o que a sociedade tem com isso e como é o processo de subjetivação e constituição do sujeito e outras questões que perpassam pelo sistema de justiça. Neste aspecto, nós temos muito ainda para desenvolver e conversar para refletir sobre o que está acontecendo, nos casos de violência e de abuso sexual, por exemplo. Isso sempre aconteceu, mas nos últimos anos tem tido mais visibilidade, ou talvez tenha aumentado, dada a crescente exploração sexual dos menores e outros crimes tão graves quanto esse. Todas essas questões passam pela Psicologia Jurídica, porque é um campo de especialidade da Psicologia que faz a interface com o sistema de justiça e todos os seus envolvidos - o juiz, o advogado, o promotor de justiça, o procurador -, cada um dentro do seu papel. A Psicologia Jurídica também vai dialogar com a questão da garantia de direitos, que é característico de um Estado como o nosso.

Em seu artigo Reflexões sobre Psicologia Jurídica e seu panorama no Brasil, você defende que a Psicologia Jurídica "deve ir além do estudo de uma das manifestações da subjetividade, ou seja, o estudo do comportamento. Devem ser seu objeto de estudo as consequências das ações jurídicas sobre o indivíduo". O psicólogo jurídico pode aumentar sua atuação neste cenário?
Fátima: Correto. Por exemplo, numa disputa de guarda em que foi resolvido um litígio, não significa que não precisem acontecer ainda intervenções por conta desta decisão judicial. As intervenções não vão ser realizadas pelos profissionais do fórum, mas podem ser realizadas por outros profissionais, a fim de oferecer orientação para o genitor que ficou sem a guarda e para a própria criança, que pode viver episódios traumáticos dependendo da maneira como todo o caso venha a ser tratado. A Psicologia Jurídica não pode ficar restrita só de acordo e com os limites impostos pelo sistema de justiça. Alguns escritórios de advocacia têm contratado psicólogos para fazer perícia em determinados casos e como assistente técnico. As avaliações solicitadas podem virar provas importantes e, sem esse amparo de conhecimento, pode ocorrer todo um problema ético, afinal, nossas decisões e relatórios podem influenciar, tanto para o bem quanto para o mal.
As avaliações solicitadas podem virar provas importantes. Nossas decisões e relatórios podem influenciar, tanto para o bem quanto para o mal

Além da atuação em tribunais de justiça, o psicólogo jurídico desempenha importantes serviços em penitenciárias. Como é a rotina deste trabalho e quais as suas dificuldades?
Fátima:
O psicólogo no sistema penitenciário trabalha com o preso. Mas não necessariamente como uma forma de terapia. Veja, há situações em que o preso chama para ter uma conversa e tem indicações de depressão. O psicólogo também atua muito próximo do assistente social, para dar suporte aos presos, atendimento, fazer trabalhos em grupo, o que é muito difícil, mas possível. Nosso trabalho busca fazer um resgate da essência de cada indivíduo. Os presos são viciados em drogas, doentes ou analfabetos, e nesses encontros tenta-se orientá-los e informá-los sobre as dificuldades de suas realidades. Historicamente, dentro das prisões, a ação do psicólogo sempre foi vinculada mais com a ação pericial, a atuação mais de avaliação para concessão de benefícios. É um trabalho que avalia a condição de alguma pessoa presa e que pode fazê-la viver em sociedade de novo.

Esse trabalho é bem-aceito pela sociedade de uma forma geral?
Fátima:
Na verdade é paradoxal. Discutir sobre a posição do preso é complicado. Quais são os valores ligados a uma
pessoa que cometeu um crime? São todos negativos. A sociedade ainda tem no seu imaginário que quem cometeu um crime está dentro da prisão e quem está fora está bem, não tem nenhum problema. Até parece que as pessoas ruins estão presas e as boazinhas estão do lado de fora. A gente sabe que não é assim, né? Para trabalhar a questão da criminalidade, a sociedade tem de entender que na prisão, as pessoas que cometeram delito também são envolvidas no sistema social. Só que a Psicologia ainda contribui muito para esse pensamento, para esta estigmatização com os laudos que ela fez. E eu estou falando de uma maneira geral.

Há uma grande polêmica em relação aos laudos psicológicos, principalmente quando envolvem análise de sanidade para soltura de um preso ou condenação de um crime. Como você vê esse trabalho dos psicólogos? Fátima:Os laudos que envolvem sanidade são realizados por psiquiatras. Eles são os peritos oficiais nessa área, e o trabalho do psicólogo é muito restrito nessa situação. Os exames de sanidade podem ser solicitados em dois momentos distintos: quando o juiz, diante da defesa do acusado, acha necessário e o encaminha para a avaliação. Ou quando a defesa alega que seu cliente não estava ciente de suas ações durante a prática do crime. O papel do psicólogo somente é solicitado quando há a necessidade de se obter informações complementares, mas já baseadas no laudo feito pelo psiquiatra.
A partir dessa realidade, fica difícil avaliar o trabalho do psicólogo. Talvez sua utilidade pudesse ser mais bem aproveitada, mas entraríamos em uma discussão muito longa de reestruturar as atuações. Já com os exames criminológicos é diferente, a atuação dos psicólogos é muito importante, apesar de achar que muita coisa deve ser mudada também.

Como funcionam os exames criminológicos? Fátima:Eles ficam a cargo da Comissão Técnica de Classificação da penitenciária, que conta apenas com um psiquiatra, um psicólogo e um assistente social. As avaliações são realizadas para identificar na personalidade do sujeito algo que o tenha motivado a cometer o crime. Essas avaliações são muito perigosas, e o profissional que vai realizá-las deve tomar cuidado com a maneira que vai conduzi- las, pois elas tendem apenas a fazer transparecer a negatividade de cada indivíduo. O que se deve ter claro é que cada caso é um caso, e cada preso é um preso. E por isso fica difícil aplicar os exames criminológicos da maneira que são estruturados hoje. Uma coisa é avaliar um garoto que nasceu no morro e tem como ídolo o traficante local; outra é avaliar um homicida. elaboração dos exames está muito aquém, tanto na parte técnica quanto teórica. Eles são questionáveis. Os culpados vão desde as cabeças tradicionais, que acham que o mundo funciona assim, até os órgãos responsáveis que não investem em melhorias. Deve-se tomar muito cuidado com essas avaliações, pois facilmente pode-se cometer o equívoco de julgar a pessoa pontualmente por algum crime que ela cometeu há muito tempo e em uma situação complicada. Nessa busca alucinada de encontrar motivações para crimes, conseguimos encontrar traços em quaisquer indivíduos, mesmo não presos. Logo, anos depois, quando fazemos a entrevista para a avaliação, é preciso ressaltar os pontos negativos, mas também os positivos, toda uma nova dimensão, uma nova perspectiva de visão.

Você pode exemplificar a importância de um exame criminológico com um caso?
Fátima:
 Um caso que tratei muito complicado foi o de uma mulher acusada de matar um dos filhos de maneira cruel. Os outros filhos, por outro lado, ela tratava superbem. Entender o que se passou na cabeça dessa pessoa era uma coisa muito difícil, e provavelmente fiquei sem entender muita coisa ainda. Fiz muitas indagações, conversei com o marido, com os outros filhos, com parentes e vizinhos, tudo para tentar entender o que pode ter levado a mulher a essa situação extremada. A partir das conversas, na base de toda investigação psicológica e de informações coletadas, considerei que ela poderia cumprir a pena em um regime semiaberto. Fundamentei todo o caso e indiquei o trabalho que poderia ser feito com ela no regime. A avaliação deu um respaldo para o juiz, que deu um voto de confiança e a conduziu para o regime semiaberto. Nesse caso, a avaliação criminológica estudou o passado e o presente e determinou os fatores de um caso isolado. acusada cometeu um crime e deve pagar, contudo, sem o exame, as coisas provavelmente seriam bem diferentes. intervenção com filhos de presos, que estão nos abrigos ou com avós maternas, tem toda uma problemática social que o psicólogo pode auxiliar. Agora, nós passamos por um momento de questionamentos a respeito desses laudos e de reivindicar uma mudança de prática, outros paradigmas teóricos e até os conselhos de Psicologia contribuem nessa discussão. O grande desafio que eu vejo hoje é trazer não só a discussão, mas a construção de outra identidade profissional que possa transformar essa ação pericial de outra qualidade e garantir que o psicólogo faça assistência, porque antes a gente só fazia perícia. Estou falando de assistência de famílias ou diretamente com as pessoas presas. O tempo que se tinha era somente para fazer perícia. Há a necessidade urgente de psicólogos na assistência, tem muita coisa que precisa ser feita com o pessoal preso e para a sociedade.

Como é dividido o tempo entre exames criminológicos e assistência?
Fátima:
Uma unidade prisional, como a Unidade Feminina de Santana, tem quase 3 mil presas e cerca de sete ou oito psicólogos para fazer assistência e perícia. Evidentemente que não dá. E com o tempo que tem, só dá para fazer perícia que é de interesse do preso. Era obrigatório fazer antes da resolução de uma lei do Código Penal. Hoje é facultativo, e nem todos os juízes pedem e nem para todos os casos e tipos de denúncia é necessário. E mais, dentro de nosso código de ética, quem faz perícia não pode fazer assistência. Então, na verdade, os órgãos responsáveis pelo sistema penitenciário têm de contratar mais, têm de fazer outra organização de trabalho. Nós podemos ampliar muito nossa atuação no sistema penitenciário visando sempre à melhor atuação do profissional para defender os direitos humanos. A carência da intervenção psicológica é muito grande para familiares e filhos de presos. família do preso tem uma necessidade enorme, mas não há encaminhamento adequado. São poucas as clínicas que conseguem receber, e o número é muito alto.

Dentro da penitenciária, o psicólogo jurídico enfrenta situações diretas de violência, como agressões físicas ou mesmo psicológicas?
Fátima:
Eu nunca vivi na minha experiência qualquer negativa tensa ou agressiva. Agora, o preso observa. Ele se torna um expert em observar, e com isso ele vai te conhecendo também. Então, quando você tem uma postura coerente, um linguajar correto e sua palavra não se contradiz nos diversos encontros, ele aceita esse diálogo. Mas se você trocar muito de opinião, não mostrar uma linha de pensamento clara, se perde a "confiança" dele, porque o ambiente prisional é um lugar de pura desconfiança, todos vivem em eterna vigilância, tanto o preso quanto o funcionário.

E para quem vocês encaminham os relatórios e avaliações sobre os detentos? Há um diálogo direto com o diretor da penitenciária?
Fátima:
Dentro das unidades há a diretoria, que é responsável pela área de reintegração social, saúde e área de trabalho. Os psicólogos, geralmente, ficam submetidos a estas diretorias, e para elas prestam assessorias, podendo fazer as perícias ou a assistência. Assim, o profissional pode desenvolver projetos temáticos e atender demandas específicas que são feitas pelos presos. Há uma coisa que é importante também que as pessoas saibam: com a questão do crime organizado, não é fácil o preso sair do seu pavilhão e ser atendido, porque quem faz parte de alguma facção criminosa vai ser interrogado por outro, para saber com quem ele está falando ou deixando de falar, e vai ficar cismado se ele sair muito para ser atendido. Ou seja, tem de ter muito jogo de cintura. Houve épocas em que era muito complicado, quando se ia atender e, do lado, tinha sempre um observando, conferindo as informações ditas no diálogo. Então o próprio profissional precisava tomar cuidado com o que ia dizer pelo outro. Nem tanto por ele (claro que também), mas dependendo da orientação, da pergunta, você podia colocar o preso em uma situação complicadíssima.

Qual o trabalho do psicólogo jurídico com o agente de segurança, personagem importantíssimo nesse contexto, que trabalha também diretamente com os presos sob muita pressão?
Fátima:
Há um exame que o candidato deve passar para se tornar agente de segurança, e quando bem-sucedido, ele fica dois anos em estágio para poder ser acompanhado, e depois, para a admissão, também tem entrevistas e avaliações psicológicas. Depois desse período de dois anos, ele faz toda uma formação para trabalhar. É um período em que ele tira para estudar e entrar em contato com várias disciplinas, como criminologia, relações humanas, direito penal, um instrumental para pensar na profissão e poder trabalhar com conhecimento.

O papel do psicólogo jurídico, como dissemos anteriormente, tem sido mais divulgado. E o incentivo à profissão, segue o mesmo passo?
Fátima:
O interesse tem crescido sim, mas precisa de mais organização e mais espaço para desenvolvermos melhor as habilidades. Precisamos do reconhecimento do trabalho, planos de carreira, não somente palavras. Com uma base salarial decente, os profissionais podem desenvolver melhor os trabalhos e não ficar se contorcendo em dois, três empregos. Para que haja profissionais mais qualificados e avanços na área, é preciso melhorar a remuneração, aumentar o investimento das universidades na formação dos psicólogos juristas, com especializações e espaço maior na grade horária. Com isso, surge mais interesse e espaço para trabalhos acadêmicos e trocas de experiências.

Sem comentários:

Enviar um comentário